Dentre os novos nomes que surgiram no cinema brasileiro nesta década, Heitor Dahlia talvez seja o que mais chame atenção. Seus dois primeiros trabalhos como diretor e roteirista, Nina [2004] e O Cheiro do Ralo [2007], foram sucesso de crítica e público e vencedores de prêmios pelo país e, sobretudo, revelaram um artista de cunho autoral, um estilo de direção sempre a favor da originalidade de suas histórias, até então, focadas nos instintos e perturbações de um único personagem – voltado para seu mundo particular, um casulo que só precisava ser rompido por exigência inadiável do meio externo e das pessoas nele presentes.
Deste modo, À Deriva já se revela como um filme diferente na curta carreira de seu realizador. De imediato, os dois corpos à deriva no mar na cena inicial do longa, ao som da música de Antonio Pinto e da câmera de Dahlia que integra o espectador à mesma sensação, indica uma história pautada principalmente pela relação desses personagens [pai e filha] num ambiente vasto e natural, o qual a fotografia de Ricardo Della Rosa realça com cores vibrantes e forte contraste [mais um contraponto com os longas anteriores de Dahlia, em que a escuridão e cores desbotadas eram dominantes] em composições que valorizam a beleza que a própria locação tem a oferecer.
Nesta ambientação, as férias de Filipa e sua família serão marcadas por conflitos, descobertas pessoais e revelações familiares determinantes para suas vidas, mas tudo vem à tona gradativamente, até o último momento. A história se desenvolve baseada em dois hemisférios: de um lado, adolescentes vivem uma fase de descoberta, em que o relacionamento é banalizado e os hormônios ditam as regras, um período de auto-afirmação de maturidade anulada por atitudes infantis; do outro, o casamento dos adultos fragilizado pela infidelidade. Filipa se enquadra no primeiro grupo [a escolha da estreante Laura Neiva funciona não apenas pelo talento da atriz, mas pelo físico característico de uma jovem em crescimento], mas acompanha de perto a traição do pai [o francês Vincent Cassel]. Como uma criança, a constatação do adultério é um choque e, vinda de seu pai, com o qual mantém uma relação mais próxima e afetiva, torna-se ainda mais inaceitável e ganha proporções diretas em suas atitudes.
De certo modo, o espectador é colocado na mesma posição de Filipa e a imaturidade com que observa a relação dos adultos passa a ser também do público. Se Dahlia narra com naturalidade como se apenas captasse a sucessão de acontecimentos que Filipa participa [e desta forma, o título do filme é claramente sugerido na tela], parecendo andar em círculos em alguns momentos, a história se revela nos últimos momentos. [spoiler] A grande qualidade de À Deriva se encontra na manipulação da visão do espectador que Dahlia exerce, como roteirista e diretor, para desconstruí-la no terceiro ato do filme. Para Filipa, seu pai, por conta de seu envolvimento com outra mulher [Camilla Belle], é o principal causador das brigas constantes do casal e do sofrimento da mãe [Déborah Bloch], vista em diversas cenas de sofrimento, apresentada como vítima da traição. Inevitavelmente, é assim que o espectador também enxerga os acontecimentos. O que seria o clímax da narrativa, a revelação da infidelidade de Matias para Clarice através da foto que Filipa guardava [a qual, no fim, não tem a menor importância], acaba se transformando apenas numa passagem em que as personagens se colocam em seus verdadeiros papéis.
Após todas as descobertas, Filipa procura, em busca de sexo – algo que não desejara realizar com outros meninos -, o barman do restaurante [Cauã Reymond], visto anteriormente com a amante de Matias. A ingenuidade da menina é mais uma vez evidenciada com a atitude de vingar o pai, fato que também sugere um pedido de desculpas e um recomeço entre os dois, quando voltam-se a boiar no mar como na abertura do filme. [/spoiler]
A interpretação pessoal apresentada no parágrafo anterior marca mais uma qualidade de À Deriva, ser suficientemente rico e sensível para alcançar o público de formas diversas. É apenas diferente dos outros filmes de Heitor Dahlia, mas é mais uma prova de que o cinema brasileiro ganhou um artista promissor.
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