fargo – uma comédia de erros [1996]

Fargo – Uma Comédia de Erros
(Fargo, 1996)

direção: Joel Coen
roteiro: Joel e Ethan Coen
país: EUA

+ informações:
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cinema em cena
cine players

nota | 8.5

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Uma história anunciada com base em fatos reais é capaz de mudar a postura do espectador diante da mesma, já que não apenas será uma narração fictícia que tende a soar verossímil, antes, possui um pé firmado diretamente na realidade do público. Fargo parte inicialmente desse tom de relevância e seriedade ao ser precedido por tal anúncio, para, a medida em que os acontecimentos se sucedam, Joel e Ethan Coen burlarem o próprio enunciado que inventaram. Pois ainda que o filme seja sobre pessoas comuns, passado numa cidade real, com acontecimentos, ainda que insólitos, obedientes a qualquer lei natural, não deixa de jogar com o absurdo ao dispor uma série de personagens regidos por seus próprios impulsos.

O que os Irmãos Coen fazem é compor uma realidade plausível para a narrativa em questão, em que o exagero, ainda que surpreenda pelo seu grau de improbabilidade, soe natural naquele universo – premissa que seria levada às últimas proporções com o divertido Queime Depois de Ler [2008]. Em Fargo, a odisseia tem início na cidade que dá título ao filme, onde Jerry Lundegaard [William H. Marcy] contrata dois marginais [Steve Buscemi e Peter Stormare, numa dupla de personagens tão irresistíveis quanto repulsivos] para realizarem o falso sequestro de sua esposa, Jean, maneira que encontrou de arrancar dinheiro de seu rico sogro para resolver “problemas pessoais”, como ele mesmo comunica. Gerente de vendas numa loja de carros, na realidade, Jerry pretende sair do estado em que se estacionou: dando apenas um automóvel da loja e uma pequena parte do dinheiro do resgate para os sequestradores, estaria financeiramente pronto para iniciar seu próprio projeto e romper com a imposição de seu trabalho e de seu sogro, também seu patrão.

Jerry é, por natureza, um homem passivo a qualquer atitude que lhe impõem, mas, por tentativa, busca contornar sua própria inerência. Desde a conversa com um casal de clientes no início do filme até nas falsas negociações do sequestro ante seu sogro [e como é da ciência do espectador a falsidade do crime, Jerry soa impostamente tão forçado, se colocando numa posição de superioridade que não lhe é familiar, que quase seria possível uma desconfiança por parte do sogro], o resultado é risível ao vermos um sujeito naturalmente acuado diante de situações de risco e que requerem uma postura que Jerry não corresponde. Nesse sentido, vale ressaltar o excelente trabalho de William H. Marcy, o qual entrega ao personagem uma expressão que beira o fracasso, atribuindo-lhe ainda certas particularidades, como um sorriso de puro nervoso e gagueira em certas ocasiões.

Mas as coisas não aconteceram como planejadas. Na fuga após raptarem Jean, numa sequência hilária pelo comportamento enlouquecido da mulher e tensa pela maneira e o tempo com que a direção compõe cada tomada, os sequestradores [sendo mais exato, apenas o interpretado por Stormare, o que surpreende devido ao comportamento taciturno que apresentava até então] acabam cometendo três homicídios que mudam todo o rumo da narração. Crédito novamente ao talento de Joel e Ethan Coen – apesar da direção estar creditada apenas ao primeiro – em compor uma cena extremamente elegante do ponto de vista estético, enriquecida pela fotografia do sempre competente Roger Deakins, que, apenas nesse momento, sobrepõe a brancura da neve ora dominante pela escuridão da estrada rompida apenas pelos faróis dos carros, eficaz para criar um suspense paralisante e saltando a violência para além da tela.

É como se um longo prólogo chegasse ao fim com o surgimento da policial Marge [Frances McDormand], pronta para resolver o crime e, obviamente, deixar Jerry numa situação ainda mais complicada. Basta constatar a experiência com que Marge desvenda todo o ocorrido, a ponto de relatar detalhes minuciosos, apenas com poucos minutos no local do crime – e sua gravidez, por sua vez, não atribui à personagem nenhuma fragilidade que supostamente era esperada. Frances McDormand, na interpretação que lhe garantiu o Oscar de Melhor Atriz, equilibra com precisão a simpatia de uma mulher, sempre com um sorriso e uma maneira peculiar de falar – como todos daquela cidade -, e a impetuosidade de uma policial disposta a colocar sua pacata cidade no estado ameno em que se encontrara.

Pois Fargo é justamente sobre essa a mudança da ordem natural das coisas, apresentada do ponto de vista interno [a sucessão desenfreada de acontecimentos entre aquelas pessoas] e externo (a transformação do estado da cidade). Contida, porém, numa narração eloquente e divertida que se destaque entre a notável filmografia de seus realizadores.

do começo ao fim [2009]

Do Começo ao Fim
(idem, 2009)

direção: Aluizio Abranches
roteiro: Aluizio Abranches
país: Brasil
estreia: 27 de novembro

+ informações
site oficial
imdb
cinema em cena

nota | 4

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Do Começo ao Fim ganhou imenso alarde muito antes de chegar às telas do cinema. Surgiu como um exemplar diferente do cinema nacional, afinal, o tema da homossexualidade, combinado a incesto, nunca havia sido tratado com a seriedade que seu vídeo promocional, sucesso de exibições na internet, sugeria – além das cenas de nudez entre os dois atores protagonistas que criaram fortes expectativas em um público específico. Mas após seus poucos 90 minutos de duração, os créditos finais surgem com a impressão de que o longa de Aluizio Abranches se sustentou até aqui exclusivamente por seu controverso conteúdo, ficando mesmo na promessa da abordagem cuidadosa à temática e, principalmente, da relevância e qualidade quanto cinema.

A primeira parte do filme trata de acompanhar a infância de Thomás e Francisco [Gabriel Kaufmann e Lucas Cotrin inicialmente] – filhos somente da mesma mãe [Julia Lemmertz] -, marcada por uma admiração do primeiro pelo segundo, compensada por este através de um cuidado rigoroso. Apesar da troca de carinho constante e abraços e contatos físicos em ocasiões supostamente desnecessárias, essa aproximação excessiva só ganha olhares suspeitos pois o espectador possui ciência do fim desse relacionamento.  Obviamente, eles agiam segundo um sentimento fraternal, instintivamente natural e nada entendiam do que sentiam – ou melhor, nem se questionavam sobre isso -, mas ganhavam olhares suspeitos de seus pais, tomados pela preocupação que reflete uma incapacidade de lidar com uma embaroçosa situação.

Mas se nesse momento, o roteiro, também de Abranches, trata com certa delicadeza esse início sugestivo, tropeça a medida que o filme avança – seu título, inclusive, soa irônico, já que carece justamente de um bom desenvolvimento entre as duas extremidades da história. Quando ocorre a passagem de tempo – de uma forma bastante abrupta, vale dizer – o romance entre Thomás e Francisco [agora, Rafael Cardoso e João Gabriel Vasconcellos] já está consolidado, ficando a pergunta de como tudo começou. Há uma pressa incompreensível, que coloca todos os questionamentos, descobertas, conflitos e, sobretudo, o surgimento do sentimento amoroso unido ao desejo sexual fora de cena. E assim, após um imenso salto narrativo e um vazio de acontecimentos, vemos os dois atores se despindo frente às câmeras.

Após a sucessão de cenas que inaugura o segundo ato, fica claro que a principal característica da direção de Abranches é a exploração dos corpos da dupla protagonista. O roteiro, inclusive,  não deixa de criar oportunidades para isso, como a viagem do casal para a Argentina: se não fosse suficiente sua carência de contribuição para a narração, parece apenas uma ocasião para mostrar o contato dos corpos nus dos atores – numa das cenas mais bregas que o cinema apresentou este ano. Ou ainda as sequências na praia, as quais, tomadas pelo mesmo vazio de significado que permeia o longa, estão muito aquém do sentido metafórico que tentam possuir [o aparecimento no mar de um determinado personagem brincando junto com os irmãos, além de equivocado, é ineficaz em expressar o que deseja].

O recurso da narração em off de Thomás é incompreensível; se já surge com desconfiança na primeira cena, tal impressão se confirma a medida que sua gratuidade se evidencia – não é à toa o abandono do recurso após um dado momento -, inclusive por ser atribuída ao personagem mais negligenciado do romance. Além desses problemas isolados [pode ser citado ainda o diálogo sobre o governo Collor, o qual, mal construído, busca uma contextualização que nada tem a ver com as necessidades do filme], o roteiro ainda peca, ajudado pela edição, na coesão dos acontecimentos: se numa cena vemos os dois irmãos em abraços e carinhos dolorosos devido à iminente separação entre eles, é de causar surpresa a alegria que os permeia na sequência seguinte, e deste modo, sentimentos e decisões são facilmente esquecidos e sobrepostos por outros num simples corte. Vale ainda ressaltar o episódio da aliança,  com solução bastante questionável e barata se analisarmos as atitudes antecedentes do personagem: spoiler toda vez que saía, reparem que Francisco não usava sua aliança, o que parece uma atitude bastante pensada pelo personagem; por que justamente quando pretendeu consolidar o beijo ou o sexo com a mulher, permaneceu com o anel? Não é apenas incoerente; antes, enfranquece a própria dramaticidade que a sequência poderia gerar. /spoiler

Com um roteiro de problemas sem fim, como diretor, Abranches pouco tem a fazer. E, de fato, pouco faz. Seu maior acerto é o uso da trilha sonora de André Abujamra, que ameniza vagamente o vazio emocional e imagético do filme, uma vez que a de fotografia sem grande destaque de Ueli Steiger [O Dia Depois de Amanhã] é aliada à condução pouco inspirada e falha do diretor. O elenco também é prejudicado com o fraco texto, mas consegue se sobressair. Nas poucas cenas em que pode expressar alguma preocupação de sua personagem, Julia Lemmertz faz o que está ao seu alcance para tocar o espectador, enquanto que Rafael Cardoso e João Gabriel parecem bastante à vontade nas cenas íntimas e trabalham com uma naturalidade fundamental. Apenas o pequeno Gabriel Kaufmann deveria mudar o tom irritante e choroso com que pronuncia cada fala.

Do Começo ao Fim é um filme medroso. Fica evidente que não quer discutir sobre preconceito [aliás, sobre nada] ou qualquer tipo de intervenção do meio externo sobre o relacionamento – decisão a qual, lógico, torna o filme bastante utópico -, mas ao menos compensasse com a atenção necessária para os próprios personagens e seu romance. Um romance que não é feito só de amor e saudade, como é pintado, com tamanha fantasia, durante todo o filme, um romance que quando aparece na tela, já está em seu grau mais elevado, e nem acompanhamos seu nascimento.

É, não foi dessa vez.