equus [dir.: sidney lumet, 1977]

[Há um spoilerzinho no último parágrafo, mais precisamente na última linha do texto.]

“Ele criou um cerimonial desesperado para acender uma chama de êxtase no mundo vazio que o cerca. Está bem, ele está destruído por ele. Horrível! Virtualmente está destruído! Mas tem uma coisa: esse garoto conheceu a paixão mais forte que eu em cada segundo de toda a minha vida. Deixa-me lhe dizer algo: Eu o invejo!”

[fala do personagem Martin Dysart]

A primeira imagem que temos do personagem Alan Strang [Peter Firth], logo no primeiro minuto de filme, é controversa. Nu em uma floresta pouco perceptível pela falta de luz, visto que o único elemento iluminado do quadro é o personagem, acaricia um cavalo precipitando seu corpo ao do animal. É quase uma simbiose, que o espectador observa enquanto a voz em off do psiquiatra que irá cuidar do caso de Strang, Martin Dysart [Richard Burton], determina o tom confessional e veemente que perpetuará sua narração – o filme é um longo flashback – durante todo o longa.

Peter Shaffer, autor da dramaturgia original e do roteiro para a adaptação dirigida por Sidney Lumet, coloca, sob a confissão de um sujeito fragilizado e em crise – algo que se repetiria posteriormente em Amadeus -, o espectador diante de dois sujeitos que se esclarecerão para o público, ainda que não por completo, à medida que a narração decorre. Sem dispô-los hierarquicamente, mas como indivíduos dependentes um do outro para vivenciarem uma catarse ao fim do processo médico.

Catarse, inclusive, que se realiza em dois sentidos da palavra. Para Alan, a vivência dá-se em seu sentido mais objetivo, pois é liberando, pela primeira vez, suas memórias e sentimentos obscuros, mesmo que hipnotizado em alguns momentos, que o personagem busca alívio. E é interessante como o roteiro desenvolve esse processo – de modo sempre gradativo, com as diversas informações complementando umas às outras no decorrer do filme [se num primeiro instante, por exemplo, as cordas e os sujos sacos de pano que Martin encontra numa caixa no quarto do rapaz não fazem sentido, o roteiro os traz futuramente à narração e evidencia suas funções na história, algo que Lumet revela sem qualquer didatismo], o que mantém o interesse do público na história em todo o tempo – e desmistifica o Alan aparentemente pervertido e doentio – e hostil, se somarmos a informação, ainda incompreendida, de ter cegado os cavalos do estábulo onde trabalhava – do início do filme.

Apesar dos pais do jovem terem um papel fundamental para seu estado de conturbação, como a religiosidade excessiva da mãe – que impõe a ideia de um deus que se entrega, ao qual se deve adoração, auto-sacrifício, devoção e renúncia, conceitos religiosos que repercutem na relação de Alan e seu deus Equus -, é em sua primeira revelação, quando conta seu contato inicial com um cavalo, que o conflito de Alan se fundamenta. Cena que Lumet compõe de forma brilhante ao imprimir, com romantismo e beleza, através da trilha sonora e planos subjetivos, a dimensão que a presença do cavalo – e seu cavaleiro – tiveram sobre ele, ainda criança. O cavaleiro, por sua vez, possui uma voz imponente, a qual numa criança chegaria com ainda mais dimensão, e, com roupas tão escuras quanto à tonalidade do cavalo, forma praticamente um único corpo com o animal, um dos anseios futuros de Alan com seu deus.

Inclusive, a ideia de um “único corpo” também é um conceito altamente religioso no que diz respeito às questões sexuais. Segundo dogmas cristãos, aqui personificados na figura da mãe de Alan, é através da relação sexual que marido e mulher formam um só corpo. Desta forma, não é à toa o forte caráter sexual, a paixão fervorosa e o prazer latente nos rituais de Alan com o cavalo – como Lumet revela em uma das cenas mais emblemáticas do longa -, o que deixa claro o entrelace entre os conceitos cristãos aprendidos e a sua devoção particular. Além disso, em momentos diversos, Alan repentinamente imita movimentos de cavalo com seu corpo, fato que também salienta o anseio do rapaz.

Quanto ao Dr. Dysart, a citação que inicia o texto evidencia sua admiração por Alan – outro aspecto presente na obra posterior de Shaffer, com Salieri e Mozart. Martin se torna uma figura paradoxal, que tenta em seguir sua ética profissional ao tratar o jovem e afastá-lo de sua paixão ao mesmo tempo em que venera sua entrega e devoção. Talvez seja um aspecto humano latente a um nível ao qual nunca alcançou – e a relação fria e distante com sua mulher é apenas um indício -, e por isso se questiona por romper essa vivência em outra pessoa. Ao fim do processo, Martin já não é mais o médico – e pessoa – que era antes de tratar Alan, algo que seu discurso no início do filme indicava; agora, sente-se convidado a ouvir a voz de Equus, e sentir-se vivo.

nota | 8,5

100 filmes de um século | ano 1901

1901
L’homme à la tête en caoutchouc
Direção: Georges Méliès / FRA

O início de L’homme à la tête en caoutchouc parece nos preparar para um mero número de mágica. Até que o sujeito em cena, o próprio Georges Méliès, surpreende e retira da caixa uma cabeça e a coloca sobre a mesa. A partir desse momento, Méliès continua a surpreender, mas como diretor e principal precursor dos recursos cinematográficos, vide o que foi capaz de fazer nesse início de século. Novos truques e técnicas de filmagem eram desenvolvidos nessa época; entretanto, cabia ao realizador como apresentá-los ao público e em quais breves histórias inseri-los. Méliès unia favoravelmente essas duas questões, e não por acaso, o encantamento permanece no público de hoje. É um fato que ainda se repete: narração ruim revestida por técnica desenvolvida continua não agradando e deixa o espectador vazio de emoções. E talvez no início do cinema não fosse diferente – em menor escala, claro. Não deixe de reparar nas expressivas caretas do cineasta, divertidas como o desfecho da história, mesmo que esperado. Ao fim do filme, conclui-se então que a magia foi realizada. Não a feita pelo personagem em cena, mas pelo cineasta. [Assista aqui]

Nota: Nesse mesmo ano, Scrooge; or Marley’s Ghost levou o clássico de Charles Dickens, A Christmas Carol, para o cinema – Robert Zemeckis adaptou-o em 2009. O curta faz uso de recursos de edição impressionantes, e apesar do forte cunho teatral imprescindível à época, compõe um resultado fortemente cinematográfico devido ao modo como a técnica é utilizada na narrativa. Infelizmente, encontrei apenas uma versão incompleta no youtube. Mas não deixe de conferir [clique aqui], vale a pena.

100 filmes de um século | 1900

glee e os 10 melhores momentos musicais

Ainda na euforia da season finale – sim, gente, eu realmente amei aquilo -, escolho meus 10 momentos musicais preferidos de Glee. Fique à vontade para apontar os seus nos comentários.

Até a próxima temporada!

10 | AND I AM TELLING YOU I’M NOT GOING

Quem canta? Mercedes
Quando? e13
Por que entrou? Porque a Mercedes é diva e um top de músicas de Glee sem um solo seu não seria digno. Pôs a Rachel no chinelo, fez seus companheiros do Clube delirarem, e os espectadores também. Mais uma interpretação marcante para uma música que eu a-mo.

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9 | KEEP HOLDING ON

Quem canta? New Directions
Quando? e07
Por que entrou? Porque quando alguém consegue tornar audível uma música da Avril Lavigne é algo que precisa ser reconhecido. Foi uma apresentação emocionante, esse figurino preto e branco é uma graça pela simplicidade e o resultado é uma prova que Glee faz milagres.
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8 | DON’T RAIN ON MY PARADE

Quem canta? Rachel
Quando? e13
Por que entrou? Porque quando a Rachel canta “I’ll, march, my, baaaaaaand ooout”, ergue as mãos e os outros integrantes entram pelas portas do teatro, eu fiquei arrepiado da cabeça aos pés. Seria impossível o New Directions não ganhar com esse solo, o melhor da personagem ao longo da temporada.

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7 | LIKE A VIRGIN

Quem Canta? Rachel, Jesse, Finn, Santana, Emma e Will
Quando? e15
Por que entrou? Porque justamente a única música que eu gosto da Madonna garantiu o melhor momento do episódio. Com uma edição muito inspirada, que intercala a mesma situação vivida por três casais diferentes, a canção não poderia ser utilizada em contexto melhor.

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6 | POKER FACE

Quem canta? Rachel e Shelby
Quando? e20
Por que entrou? Porque eu não sabia que “Poker Face” poderia continuar incrivelmente boa cantada na voz e piano. De imediato, foi um susto, a música estava irreconhecível. Mas além das vozes das atrizes que dispensam comentários, é um tanto engraçado mãe e filha cantarem “I’ll get him hot, show him what I’ve got” como se fosse a coisa mais inocente do mundo.

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5 | DON’T STOP BELIEVIN

Quem canta? New Directions
Quando? e01/ e22
Por que entrou? Porque a música virou praticamente um hino da série, e foi uma ótima escolha voltar no encerramento da temporada. O que seria do piloto sem essa canção? Não dá para pensar em Glee e não pensar em “Don’t Stop Believin”.

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4 | SWEET CAROLINE

Quem canta? Puck
Quando? e08
Por que entrou? Porque esses números musicais mais simples, no espaço de ensaio e só com voz e violão, também funcionam muito bem. Puck mostrou que sabia cantar e conquistou não só a Rachel nesse episódio, mas a mim também. O “bah, bah, bah” no fundo é fofo e a música é viciante.

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3 | MAYBE THIS TIME

Quem canta? April e Rachel
Quando? e05
Por que entrou? Porque Kristin Chenoweth arrasa e até a Liza Minnelli ficaria com cara de paisagem com essa interpretação. Não seria mal ver a April também na segunda temporada.

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2 | DEFYING GRAVITY

Quem canta? Kurt e Rachel
Quando? e09
Por que entrou? Porque meu querido Kurt não podia ficar de fora, e nenhum outro momento representa melhor seu talento que essa parceria com Rachel. Mesmo desafinando no final, por caridade, foi incrível. [Não tem a versão solo? Eu tenho. Baixe aqui o solo do Kurt e aqui o da Rachel. De nada.]

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1 | OVER THE RAINBOW

Quem canta? Will e Puck
Quando? e22
Por que entrou? Porque foi o momento mais emocionante de toda a temporada. Eu já estava chorando desde “To Sir, With Love”, aí quando o Will começou com “Soooomewhere over the rainbow” eu não parei mesmo. Os amigos e casais dando as mãos, recostando no ombro do outro, fazendo graça enquanto os versos de uma canção já muito especial eram cantados numa bonita versão e diferente da original. Lindo, inesquecível.

glee e a season finale

Eu quase desisti de Glee no quarto episódio da série, quando o time de futebol americano dançou “Single Ladies” no gramado para ganhar um jogo. Sim, era engraçado, mas era também uma das coisas mais sem sentido que já assistira num conteúdo audiovisual. Parecia o ápice do insulto ao sentido lógico e ao mínimo de verossimilhança esperada pelo espectador. Insulto o qual, até esse momento, a série já fazia em pequenas doses. Certos conflitos entre os personagens e novas situações, no mínimo, estranhas que surgiam a cada início de episódio – como a criação do Acafellas, Mercedes se apaixonar pelo Kurt, etc e tal – se resolviam antes do próximo capítulo ir ao ar. Até que uma hora a gente entende: isso é Glee!

Então quando a Rachel se apaixonou pelo Will, Mercedes namorou Puck e junto com o Kurt fez parte das Cheerios, Terri trabalhou de enfermeira na escola, um antigo integrante do Clube voltou para acabar com ele, Will despertou em Sue algum sentimento – ok, até hoje isso não desceu -, a mãe da Rachel aparecer de uma hora pra outra e por aí vai, bastaria um episódio ou um pouco mais para esses problemas se resolverem e  as coisas voltarem ao normal. É como um universo particular, onde as coisas só acontecem e fazem sentido porque estão nele.

A lógica de  Glee, mesmo justificando seus acontecimentos improváveis e seja a desculpa para parte dos números musicais, inevitavelmente comprometeu a qualidade da série.  Os episódios são pensados a partir das músicas e não o contrário – o que é óbvio, já que é justamente essa sua proposta -, e Glee mostrou que a fórmula deu certo.  Bem, na maioria das vezes. No esperado “The Power of Madonna”, um dos episódios mais fracos da temporada, os personagens pareciam títeres controlados por um roteiro que os moviam com o único intuito de cantarem músicas da Madonna, suas motivações e subjetividade eram sobrepostas pela necessidade de encaixar a maior quantidade possível de músicas da cantora. Também não dá para ignorar situações infantis e dramaturgicamente fracas, como Jessie no New Directions e seu romance bobo com Rachel, prejudicando os primeiros episódios da retomada.

Mas a gente percebe que essas ressalvas não fizeram muita diferença quando você se acaba de chorar na season finale e se emociona na apresentação do grupo no campeonato e o coração bate mais forte no momento do anúncio do vencedor e morre de rir da Sue dizendo que vai vomitar na boca do Will se ele não largar sua mão e continua com lágrimas nos olhos e feliz porque o Clube terá mais um ano, mesmo você já sabendo disso. Acompanhar 22 episódios sobre um grupo de personagens que cantavam seus sentimentos e dificuldades e apenas buscavam ser alguém numa escola onde qualquer minoria leva raspadinhas na cara criou um elo insuperável, fazendo compreender que por trás de acontecimentos incompreensíveis havia personagens verdadeiros, que traziam consigo conflitos a serem resolvidos e tratados. Nesse sentido, Glee apresentou um carinho especial ao falar de homossexualidade, preconceitos, [auto]aceitação, diferenças, família, com seriedade e humor, sem nunca atingir um moralismo gratuito. O resultado desse processo, os alunos deixam claro na emocionante cena em que “To Sit, With Love” é cantada para o Mr. Schuester.

Não menos importante e o maior diferencial da série, as músicas. Glee homenageou artistas, reinventou clássicos, exaltou sucessos recentes – tornou alguns ainda melhores que a versão original -, e isso deve-se a um elenco primoroso, composto por atores/cantores dotados de grandes vozes. E já penso que, quando a série chegar ao fim – que demore muitos anos para isso -, restarão as músicas para matar a saudade. E com elas, lembranças de momentos inesquecíveis de uma série que, mesmo com peculiaridades duvidosas, já é muito querida.

E Sue Sylvester: “Eu te amo. Ainda faço um top com as suas melhores frases. Beijomeliga.”