[Há um spoilerzinho no último parágrafo, mais precisamente na última linha do texto.]
“Ele criou um cerimonial desesperado para acender uma chama de êxtase no mundo vazio que o cerca. Está bem, ele está destruído por ele. Horrível! Virtualmente está destruído! Mas tem uma coisa: esse garoto conheceu a paixão mais forte que eu em cada segundo de toda a minha vida. Deixa-me lhe dizer algo: Eu o invejo!”
[fala do personagem Martin Dysart]
A primeira imagem que temos do personagem Alan Strang [Peter Firth], logo no primeiro minuto de filme, é controversa. Nu em uma floresta pouco perceptível pela falta de luz, visto que o único elemento iluminado do quadro é o personagem, acaricia um cavalo precipitando seu corpo ao do animal. É quase uma simbiose, que o espectador observa enquanto a voz em off do psiquiatra que irá cuidar do caso de Strang, Martin Dysart [Richard Burton], determina o tom confessional e veemente que perpetuará sua narração – o filme é um longo flashback – durante todo o longa.
Peter Shaffer, autor da dramaturgia original e do roteiro para a adaptação dirigida por Sidney Lumet, coloca, sob a confissão de um sujeito fragilizado e em crise – algo que se repetiria posteriormente em Amadeus -, o espectador diante de dois sujeitos que se esclarecerão para o público, ainda que não por completo, à medida que a narração decorre. Sem dispô-los hierarquicamente, mas como indivíduos dependentes um do outro para vivenciarem uma catarse ao fim do processo médico.
Catarse, inclusive, que se realiza em dois sentidos da palavra. Para Alan, a vivência dá-se em seu sentido mais objetivo, pois é liberando, pela primeira vez, suas memórias e sentimentos obscuros, mesmo que hipnotizado em alguns momentos, que o personagem busca alívio. E é interessante como o roteiro desenvolve esse processo – de modo sempre gradativo, com as diversas informações complementando umas às outras no decorrer do filme [se num primeiro instante, por exemplo, as cordas e os sujos sacos de pano que Martin encontra numa caixa no quarto do rapaz não fazem sentido, o roteiro os traz futuramente à narração e evidencia suas funções na história, algo que Lumet revela sem qualquer didatismo], o que mantém o interesse do público na história em todo o tempo – e desmistifica o Alan aparentemente pervertido e doentio – e hostil, se somarmos a informação, ainda incompreendida, de ter cegado os cavalos do estábulo onde trabalhava – do início do filme.
Apesar dos pais do jovem terem um papel fundamental para seu estado de conturbação, como a religiosidade excessiva da mãe – que impõe a ideia de um deus que se entrega, ao qual se deve adoração, auto-sacrifício, devoção e renúncia, conceitos religiosos que repercutem na relação de Alan e seu deus Equus -, é em sua primeira revelação, quando conta seu contato inicial com um cavalo, que o conflito de Alan se fundamenta. Cena que Lumet compõe de forma brilhante ao imprimir, com romantismo e beleza, através da trilha sonora e planos subjetivos, a dimensão que a presença do cavalo – e seu cavaleiro – tiveram sobre ele, ainda criança. O cavaleiro, por sua vez, possui uma voz imponente, a qual numa criança chegaria com ainda mais dimensão, e, com roupas tão escuras quanto à tonalidade do cavalo, forma praticamente um único corpo com o animal, um dos anseios futuros de Alan com seu deus.
Inclusive, a ideia de um “único corpo” também é um conceito altamente religioso no que diz respeito às questões sexuais. Segundo dogmas cristãos, aqui personificados na figura da mãe de Alan, é através da relação sexual que marido e mulher formam um só corpo. Desta forma, não é à toa o forte caráter sexual, a paixão fervorosa e o prazer latente nos rituais de Alan com o cavalo – como Lumet revela em uma das cenas mais emblemáticas do longa -, o que deixa claro o entrelace entre os conceitos cristãos aprendidos e a sua devoção particular. Além disso, em momentos diversos, Alan repentinamente imita movimentos de cavalo com seu corpo, fato que também salienta o anseio do rapaz.
Quanto ao Dr. Dysart, a citação que inicia o texto evidencia sua admiração por Alan – outro aspecto presente na obra posterior de Shaffer, com Salieri e Mozart. Martin se torna uma figura paradoxal, que tenta em seguir sua ética profissional ao tratar o jovem e afastá-lo de sua paixão ao mesmo tempo em que venera sua entrega e devoção. Talvez seja um aspecto humano latente a um nível ao qual nunca alcançou – e a relação fria e distante com sua mulher é apenas um indício -, e por isso se questiona por romper essa vivência em outra pessoa. Ao fim do processo, Martin já não é mais o médico – e pessoa – que era antes de tratar Alan, algo que seu discurso no início do filme indicava; agora, sente-se convidado a ouvir a voz de Equus, e sentir-se vivo.